terça-feira, 20 de maio de 2014

Dos preconceitos cotidianos




" Em Los Angeles ninguém te toca. Estamos sempre atrás do metal e do vidro. Acho que sentimos tanta falta desse toque, que batemos uns nos outros só para sentir alguma coisa".






Esses dias assisti uma parte do filme "Crash", primeiro filme dirigido por Paul Haggis, roteirista do "Menina de Ouro". Já havia assistido no cinema em 2004 e mais umas duas vezes na televisão. Acho um filme sensacional e bastante cru para os padrões hollywoodianos. 
O tema central são os preconceitos cotidianos que estão profundamente enraizados no nosso inconsciente coletivo e já não conseguimos mais diferencia-los do que realmente somos.
No filme há diversas histórias que se cruzam após uma série de eventos fatídicos. Lembro que no cartaz do filme, a chamada era a seguinte "Até que ponto você se conhece"? Essa é a questão chave da trama. 

Você nega que segurou a bolsa com mais força quando um jovem negro e humilde passou por você de noite na rua? Nega que nunca falou coisas como "tinha que ser preto" "tinha que ser mulher" "tinha que ser nordestino"? Dentre outras  coisas, como mandar um mendigo trabalhar, dizer que homens tatuados são ex-presidiários? Eu não. 
Cometer esses, as vezes pequenos atos preconceituosos e, infelizmente comumente aceitos pela sociedade, é algo aceitável quando você ignora as consequências deste ato. Mas a partir de quando você toma consciência da realidade em que está inserido e do outro, a própria intolerância se torna intolerável.

O filme trata de alguns tipos de preconceitos: o latino tatuado que é taxado por vagabundo e marginal pelo imigrante iraniano, que tem sua loja assaltada e depredada com mensagens de ódio, que tem uma filha que é médica, a qual sofre preconceito no hospital que trabalha; o policial racista que aborda um casal de negros e ao revistar a mulher, abusa dela sexualmente e em casa sofre ao ver seu pai morrer de câncer sem poder fazer nada, devido ao péssimo sistema de saúde norte americano. Mais tarde, em um acidente de carro, salva a vida da mulher que abusou; o seu parceiro, que em um ato impulsivo mata um jovem negro, que por sua vez é irmão de um investigador da polícia que tem vergonha das suas raízes pobres; uma mulher rica e esnobe que maltrata sua empregada latina e depois de sofrer um acidente doméstico, a empregada é a única pessoa com quem pode contar; o cara parado pelo policial racista  é um famoso diretor de cinema que tenta esconder sua origem afro descendente fingindo que é budista e em casa é pressionado pela mulher para ser mais "homem", dentre outras pequenas histórias que se entrelaçam no decorrer da película. 

Traz-se à tona a questão do preconceito estereotipado: o negro, o latino, o tatuado, o imigrante, o rico, o pobre. Mas também, traz questões fortíssimas, fazendo o espectador se questionar, realmente, até onde ele se conhece? Me horrorizei com a cena em que o policial (Ryan Phillip) mata o jovem negro achando que ele iria puxar uma arma. Mas realmente, o que eu teria feito? Teria esperado ele TALVEZ puxar uma arma e pagado pra ver? Nem teria passado pela minha cabeça que ele puxaria uma arma? Teria agido igual ao policial? Não sei. 
O que eu teria feito se o policial (Matt Dylon, na melhor atuação da sua carreira) abusasse da minha esposa na minha frente? O desafiaria ? O ameaçaria? Teria ficado em choque, como o personagem? Teria agredido o policial e talvez levado um tiro ou apanhado? Não sei. 

O filme aproxima personagens de etnias e classes sociais diversas em situações fatídicas, demonstrando, sem filtros, que: não importa sua etnia, sua classe social, sua aparência, seu modo de vida, precisamos uns dos outros. Vivemos todos no mesmo planeta É absurdo nos afastarmos das pessoas por questões tão pequenas. É uma mensagem de solidariedade bem sutil, mas está lá, basta ver o filme umas três vezes como eu e absorver todas as suas nuances. 

Traço um paralelo (talvez aprofundado demais para uma pequena resenha) com algo muito mais subjetivo que essas discriminações escancaradas e muito mais brasileiro. Primeiro, o fato de que é comum no Brasil, o oprimido não saber que é oprimido e nem o que lhe oprime. O negro não sabe porque ganha menos que o branco que exerce a mesma função, apenas aceita. A mulher não sabe porque ganha menos que o homem que desenvolve a mesma função, apenas aceita. Não há mais levante, há irresignação, há uma nação de irresignados. 

Uso o exemplo da situação penitenciária. A mídia incentiva as massas a clamarem por mais punição e mais presídios, a diminuírem a maioridade penal, sem nenhum tipo de debate, sem opiniões divergentes. 
Por que há um programa que martela isso duas horas direto? Por que o pobre e negro é trancafiado e o policial que mata na favela e o rico que sonega impostos não são punidos? Não sei, mas se o Bonner falou que necessitamos de mais presídios, está certo. 
As massas não percebem que o problema carcerário não é penal, mas sim social. A mídia é (um dos) o instrumento opressor das massas no Brasil atualmente, um grande teatro de marionetes, disseminando toda a sorte de preconceitos e padrões de comportamentos. Não é uma tarefa para amadores se levantar contra o Grande Irmão, nem contra as injustiças, nem contra os preconceitos, nem contra as Rachel Sheherazade, mas continuamos na luta. 

Por fim e para fechar o raciocínio da proximidade entre os indivíduos, no filme também notei o medo dos personagens de se aproximarem do outro. E quando eles conseguem: ou se redimem, como a personagem da Sandra Bullock ou a distância apenas aumenta. 

O filme começa com a frase que inicia este post, "sentimos tanta falta desse toque, que batemos uns nos outros só para sentir alguma coisa". Moro em uma cidade que nem batendo na pessoa, sentiremos um calor, uma aproximação, um risco de reciprocidade, levamos no máximo um olhar carrancudo.

Enquanto não conhecermos o outro e o vermos como pessoa, como indivíduo, os preconceitos serão bandeiras de lutas eternas.

Até lá, a distância apenas aumenta.